quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Simplismo infantil

Letícia, com seu jeito e pensamento infantil – que lhe cabiam bem, pois era uma criança, sabia e gostava disso -, vivendo num mundo imaginário quase sempre, deparou-se com a realidade. E se sentiu até mais crescida; a verdade era tão doce, quando estava de acordo com ela. Esse era um desses momentos: ela viu a realidade e resolveu juntar-se a ela, ao menos nessa tarde. Como era doce! Ver flores de verdade, tocar nelas, sentir o vento. Não que antes não sentisse ou tocasse, realizava isso enquanto imaginava outras coisas, serviam de pano de fundo pras suas histórias de mentirinha... mas era tao bom viver uma história de verdade! Mesmo depois que as flores murchavam (o que nunca acontecia em suas fantasias), pois havia a doce recordação da flor viva olhando-a... era tão recompensador. Letícia não se fez menos criança, mas decidiu que, a partir daquele dia, fitaria as coisas reais de forma mais simples e verdadeira – não que suas histórias não fossem verdades suas, as imaginações que tinha, mas gostou de sentir a verdade comum que todos viviam -; sem deixar de fantasiar, mas sabendo apreciar, quando quisesse, o mundo fora que também pode ser todo seu.

domingo, 25 de novembro de 2012

[Cont.] Final das mudanças de tempo

A moça que via o tempo mudar sem dar-lhe uma noção de vida ou agrado, fechou a cortina do quarto. É que não queria mais ver tanta beleza presa, para ela, num conceito assim, intocável: tão sem poesia, sem música, sem sensações sinéstesicas e sem os seus olhos certos de sensibilidade. Aquela beleza transformou-se numa espécie de recordação amarga. Agora, apenas suspeitava de qual estação estava envolvendo-lhe (sim, envolvendo-lhe! O país, portanto sua cidade, portanto sua rua, portanto a si, que também fazia parte disso... essa reflexão dava-lhe um conforto estranho). Antes, podia sentir pelo cheiro, mesmo que lhe tapassem os olhos. Agora, de intuição e sentidos falhados, palpita, olha pela fresta da cortina e muitas vezes percebe q errou erra. Também o vestido de flores não usa mais, incomodava-lhe tanta cor destoando num corpo tao pálido. Por vezes, ensaiava uma expressão no rosto diante do espelho imóvel; era bom pensar que poderia expressar-se, se quisesse... Sua maior observação acerca dessa mudança –e seu agora maior medo - é que não sentia mais as coisas muito bem. Perdera até sua antiga vontade de doces... a substância que encorpava seu ser sumiu, juntamente com a visão do céu na janela do quarto, bem em frente a cama, e dos pássaros que vez ou outra pousavam na sua entrada.

[Cont.] Ressureição (retorno das flores)

Cansada de observar as primaveras sem arrancar-lhe uma flor, a menina, como por impulso, saiu da janela correndo, deixou a porta aberta e saiu para o jardim: roubou três flores, que pôs no cabelo, e se sentiu mais viva: compartilhara, enfim, a estação que passava. Dançou no jardim de casa, sem música, fitando as outras flores vivas – assim pareciam também as que estavam em sua cabeça, mais repletas de vida até do que as outras! -, sentiu o frescor da manhã bater-lhe na nuca e nas pernas despidas. Rodou até cair no chão, exausta, leve e contente. Enquanto girava, refletia, numa doce embriaguez: iria manter-se assim agora, a par com a natureza, verdadeiramente perto de suas folhas nascendo e caindo; bem como das águas que desciam do céu e também do sol que esquentava a calçada. Poderia até voltar a comer maçãs e provar de novo o doce! Voltou para casa, crente e confiante do surto de clareza que, enfim, lhe ocorrera. Ao anoitecer, olhara-se no espelho. As flores, ainda que vivas, pareciam inadequadas a seu cabelo. Simplesmente não se encaixavam de forma alguma. Ela não sabia, ao menos, como fazer um penteado com elas; nem mesmo sua habitual antiga forma de prender-lhes nos fios servia. Ela, inebriada com o perfume das rosas, atônita e radiante por alguma espécie temporária de esfuziante felicidade, não percebeu que era daquelas que tinha prazo. É que essa sua recente passada alegria era um pouco fabricada pela saudade de viver. É que todo esse entusiasmo era parte de uma febre de nostalgia, de querer realizar tudo como antes, com a mesma plenitude. A menina tirou as flores, calmamente, de olhos umedecidos e decidiu por voltar a vida de antes, menos feliz, mas verdadeira. Iria, novamente, apenas observar. Privaria-se da felicidade falsa e repentina que sentira. Não conseguia mais, depois de viver a verdade, não poderia contentar-se em se viver inebriada numa alegria passageira – mas tão passageira, que sequer durava-lhe as horas do relógio -, apesar de ser uma boa sensação momentânea e de servir um pouco de consolo para a alma. Era muito pouco; um nada, diante da ternura calma e da simplicidade que já vivera e que carregara consigo. Felicidade aportava calma, serenidade e um paradoxo perfeito que envolvia êxtase e tranquilidade. Não sabia mais. Adormeceu um pouco mais seca – percebera isso porque sequer se emocionou com os passarinhos na janela, tampouco se impressionou com a hora tardia em que acordou, sem se notar falta das horas perdidas. Olhou a janela à tarde, tudo florido e um sol lá no alto e sentiu: a vida que era sua antes realmente não existe mais. Por vezes, distrai-se e adormece, esquecendo de olhar lá fora se a estação mudou.

Morte gradativa

Alice, ouvindo as vozes que lhes dirigia, respondia-nas de modo estritamente mecânico: estava chorando internamente a própria morte. Ela sabia que as coisas eram findas e que alguns sentimentos e emoções não podiam esperar para serem consolidados, mas precisava do seu momento sem eles. Só não percebera que já fazia parte deles e que, afastando-se dessas partes de alma, distanciaria-se de si. É... As emoções tem um tempo de vida. E esse acabou.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Estações (sobretudo o outono)

A moça que sorri, conta história, canta e dança, só observa, de longe, esses verbos se realizarem no pretérito. Tentou mudar suas desinências, todas tentativas em vão. Ela agora não sai para semear bons grados e ventos na sua vida, nem tampouco os divide – e, consequentemente, recebe – frutos recém-saídos do pé com quem se senta perto e aparenta bom coração. Por vezes, questiona-se quem ou o quê teria roubado essa sua capacidade de conjugar a ação que quisesse no presente e sua vontade de comer maçãs bem maduras; saboreando, feliz, até a casca - que nunca gostou, mas que comia satisfatoriamente por fazer bem à saúde. Além do mais, sabia que embaixo delas havia a doce polpa... Simplesmente acordou um dia tão aguada e fruto natural nenhum adoçava. Logo ela, que qualquer doce já tinha por consequência deixa-la toda enérgica. Teria a vida lhe tirado o paladar aguçado ou ele teria apenas modificado sem sua percepção disso? Tinha a intuição de que sempre achara que colhera as maçãs certas, até que notou que as pessoas as julgavam como azedas. Passou a sentir, aos poucos, um amargo a pô-las na boca, que foi crescendo e que, aos poucos, pôs-se insuportável. Sempre foram assim, ou agora colhia errado? Era uma questão. Ela, agora - de coração frio -, cobre-se toda de receio e medo. Olha a primavera, sem arrancar-lhe um fruto e nem mesmo uma rosa vermelha para enfeitar lhe o cabelo – opta apenas pelas artificias, cujas mortes são poupadas... privou-se até mesmo das rosas vermelhas, que sempre foram suas preferidas, especialmente pela cor vívida que passa. No verão, veste-se de sol e finge que se queima nele. No inverno, recolhe do armário o seu casaco mais grosso e faz que sente frio. Assiste, atentamente, a chegada do outono e de suas folhas mortas e secas. Não sente mais gosto: distingue a comida (com seus temperos e sabores) unicamente através da visão que, apesar de embaçada, ainda consegue enxergar e distinguir alguns alimentos e as estações. As maçãs, não as come mais: prefere privar-se delas a tê-las em gosto alterado. Por suas lembranças, pode conservar o doce das frutas e o imenso prazer de mordê-las. O vestido de flores pequenas decora a moça pálida que, com cuidado ainda sobrevive, boa parte do tempo vendo – com uma quase miopia incurável – as estações passarem e escrevendo sobre um passado doce de estações vividas.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Salgada

Ela, que é feita de sal, mergulhou no mar e deixou-se misturar toda com a água dele. Queria experimentar a sensação de se perder, confundir-se e de se tentar achar. E também provar sentir-se próxima do que é. Ela nadou muito, foi até o fundo, enterrou-se na areia, boiou, admirou a imensidão na qual fazia parte e voltou completamente inteira, muito mais inteira.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Despindo-se

Ela não se cobra, pelo menos não como tal todos se vivem cobrando, do seu lado. Não cobra nada dos outros. Sente-se pisada sob o mundo, que anda cobrando dela. É que a vida é assim, meu bem, toda uma cobrança de quem-és, pra-aonde-vais, o-que-queres, mesmo quando a resposta única é: sou e caminho por aí, somente me sendo. Porque ela gosta de ser. Não se cobra não por submissão, mas por gostar de viver essa liberdade de ser a cada dia, de acompanhar seu próprio fluxo, de amar sob sua condição. E não cobra dos outros porque quer que sejam assim também, se quiserem, porque gosta de vê-los sendo, sem condições impostas por ninguém. Porque a vida é linda quando é toda cheia de atos espontâneos. Mas é ilusório achar que vai sempre viver assim. Ela precisa aprender a andar no ritmo da vida e nas condições dela - da vida -, também. Tal como uma criança aprende as regras da sociedade, aos poucos, gradativamente, aprenderá a cobrar-se em detrimento dela, também. Porque não se vive só, muito menos ela, que tem a alma cheia. Que vive disso e que crê na necessidade de vidas misturadas de vivências próprias e de outrem, na vida de cada um. E pra isso é necessário adaptar-se às cobranças alheias, e passar a cobrar-lhes, também. Mas ainda assim, durante algum tempo, às vezes, sua personalidade natural volta com força, e experimenta maravilhada viver nessa quase total ausência de cobrança e presença de naturalidade de quem é. E sente-se profundamente livrem, mesmo que obedeça, ainda, a algumas cobranças impostas pelo dia a dia, impossíveis de se desfazer na rotina. Abre mão de muitas delas e respira aliviada a sensação de simplesmente sentir seu ser e de se deixar ir sem levar em conta considerações advindas de tanta cobrança do mundo. Respira, feliz, e agradece por experimentar parte de um ensaio da liberdade.